
Vimos recentemente a decisão do Supremo Tribunal Federal em relação a tese jurídica da Legítima Defesa da Honra, uma tese muito utilizada nos Tribunais de Júri para afastar a punibilidade de homens que agrediram e/ou mataram suas esposas.
Essa tese se inspirou na previsão legal do artigo 25 do Código Penal Brasileiro. No entanto, a legítima defesa da honra não é, tecnicamente, legítima defesa. A legítima defesa prevista no Código Penal é, em resumo, uma condição que exclui a ilicitude, ou seja, afasta a possibilidade de se punir um ato por considerar que foi realizado para a própria defesa ou de outra pessoa e desde que com meios moderados frente a uma agressão atual ou prestes a acontecer.
Para a legítima defesa legalmente prevista é possível usar de meios moderados para se defender e afastar o agressor, longe de matar ou causar lesões graves. Para a tese de legítima defesa da honra, homens defendem não a sua integridade física frente a uma agressão, mas a sua honra frente a conduta de uma mulher que é considerada ofensiva e que merece ser corrigida.
Essa honra é muito subjetiva, ou seja, muito particular, pessoal, individual, cada um sente e proporciona esse sentimento de uma forma diferente, não há medida exata para essa emoção. Mas mesmo que fosse possível “medir” o sentimento de quem se sente ofendido em sua honra, nenhum sentimento de emoção ou paixão provocado por um ato de outra pessoa pode alcançar um nível tão elevado a ponto de ser punido com a morte e justificar o crime. Aliás, a emoção e a paixão não são sentimentos levados em conta para afastar a possibilidade de responsabilização e punição de um crime, conforme previsão legal do artigo 28, inciso I do Código Penal Brasileiro.
No entanto, mesmo diante de todos esses argumentos, a tese de legítima defesa da honra foi utilizada por décadas e aceita tanto juridicamente como socialmente. Mesmo após anos de evolução em relação aos direitos das mulheres, mesmo após a Constituição Federal de 1988 assentada nos Direitos Fundamentais e na defesa dos Direitos Sociais, Civis e Políticos de todos, ainda assim essa tese sobreviveu tempo demais.
O comportamento de mulheres foi e ainda é considerado como uma extensão da reputação dos homens, como se desse comportamento dependesse a imagem e a honra desses homens, como se essas mulheres não fossem um ser humano, como se fossem objetos à mercê desses homens.
Quantos assassinos, quantos homens se beneficiaram dessa tese, justificando seus crimes, a morte de suas esposas, companheiras, mães de seus filhos, com a tese absurda de defesa de sua honra, desprezando de uma forma terrível o direito à vida, a proteção à vida e à dignidade dessas mulheres.
É importante pontuar que, mais que uma tese jurídica, era uma forma de perpetuar, alimentar e naturalizar a discriminação e a violência contra a mulher. Vivemos um tempo de transformações em vários níveis e setores, mas só agora, em 2021, essa tese absurda que colocava mulheres vítimas de violência como as causadoras de seu sofrimento e até de sua própria morte foi considerada inconstitucional e retirada definitivamente do rol de argumentação de defesa em respeito aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade de gênero e de proteção à vida.
Antes tarde do que nunca, mas bem que poderia ter sido bem mais cedo.